Editorial 191

O art. 489, §1º, do CPC e a sua incidência na postulação dos sujeitos processuais – um precedente do STJ

Fredie Didier Jr

Ravi Peixoto

O CPC/2015 realizou um sem número de importantes alterações no processo civil brasileiro. Dentre elas, é possível destacar a exigência de justificação analítica das decisões judiciais, prevista no art. 489, §§1º e 2º, e a proposta de construção de um modelo cooperativo de processo, a partir de diversos dispositivos normativos, como o art. 5º, 6º, 9º, 10º, 76, caput, 77, VI, 321, 932, parágrafo único etc.

Há uma nítida imbricação entre o modelo cooperativo e a exigência de justificação analítica. Uma das decorrências do processo cooperativo é o aumento do diálogo entre os sujeitos processuais, havendo necessidade de revalorização do contraditório, saindo de um contraditório formal para um contraditório substancial. Isso significa que não basta mais a mera ciência e a possibilidade de manifestação pelos sujeitos processuais. Impõe-se que essas manifestações sejam devidamente levadas em consideração pelos magistrados. Não se admitem mais posições no sentido de que o juiz pode escolher os fundamentos que irá analisar em sua decisão para que ela esteja devidamente justificada.

Por mais que caiba ao juiz decidir, havendo o exercício de um efetivo poder jurisdicional, esse poder, em um processo cooperativo, possui um novo condicionamento ao seu exercício, que é justamente a consideração da argumentação dos demais sujeitos processuais. Nesse novo modelo cooperativo, em que o juiz deve ser paritário no diálogo, mas volta a haver a assimetria no momendo da decisão (MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. 3ª ed. São Paulo: RT, 2015, p. 64-65), essa passa a ser condicionada à consideração dos argumentos desenvolvidos pelo sujeitos processuais. Ou seja, tem-se uma “assimetria condicionada” (PEIXOTO, Ravi. Rumo à construção de um processo cooperativo. Revista de Processo. São Paulo: RT, v. 219, mai-2013, p. 96) a valorização do diálogo ocorrido durante a condução do processo.

Esse é, de forma bastante resumida, a fundamentação da exigência de justificação analítica por parte do órgão julgador. No entanto, o processo cooperativo não opera em uma via de mão única, estabelecendo novos deveres apenas ao órgão julgador (DIDIER JR., Fredie. Princípio da cooperação. DIDIER JR., Fredie; NUNES, Dierle; FREIRE, Alexandre (coords). Normas fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 352). Simplesmente não faria muito sentido que se aumentem os deveres de um sujeito processual, exigindo uma justificação analítica e tão somente se criem novos direitos para os demais. Se as partes devem cooperar entre si (art. 6º, CPC) e atuar de acordo com a boa-fé (art. 5º, CPC), um dos deveres que podem ser extraídos de tais normas jurídicas é a de uma justificação analítica em suas postulações. Como um dos papéis das partes é o de orientar a formação da decisão jurídica (MADUREIRA, Claudio. Fundamentos do novo processo civil brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 207), o exercício deste papel deve refletir aquele que é exigido do responsável por tal decisão.

Do mesmo jeito que muito se criticam as decisões judiciais, ora por apenas citarem determinado dispositivo legal sem a devida justificativa de sua relação com o caso concreto, ora por serem tão genéricas, que se prestariam a justificar qualquer outra, não se pode ignorar que muitos desses problemas não são exclusivos da atuação do órgão jurisdicional. Igualmente, as manifestações dos demais sujeitos processuais se concretizam em postulações tão problemáticas quanto as criticadas decisões judiciais. Tal postura não está de acordo com o modelo de processo cooperativo, que tem por objetivo, dentre outros, justamente evitar que os processos se pautem por monólogos, para ser efetivamente dialético. Ocorre que, se as manifestações das partes são completamente genéricas, não parece possível exigir-se uma decisão específica, inclusive porque provavelmente o juiz sequestra condições de vislumbrar efetivamente o que ocorreu naquele caso concreto.

Tudo isso parece significar que o art. 489, §§ 1º e 2º, do CPC, que exige uma justificação analítica das decisões judiciais, não é aplicável apenas ás decisões judiciais, sendo ele uma via de mão dupla, exigindo, como consequência, a justificação analítica de todas as postulações dos demais sujeitos processuais. As partes – autor, réu, amicus curiae, Ministério Público na função de fiscal da ordem jurídica, todos que participam do processo – devem, igualmente, justificar analiticamente cada uma de suas postulações (Pioneiramente, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; ARENHART, Sergio Cruz. Novo curso de processo civil. São Paulo: RT, 2015, v. 2, p. 154. No mesmo sentido, DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 18ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 1, p. 571).
Isso permite uma revisão de diversos ônus que já existiam na legislação e que agora precisam passar por uma nova leitura, assim como ocorreu com a motivação das decisões judiciais. A legislação processual menciona a necessidade de indicação, na petição inicial, do fato e dos fundamentos jurídicos do pedido (art. 319, III, CPC), a vedação da contestação genérica, ao exigir a exposição das razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor (art. 336, CPC) e, nos dois casos, as provas que pretende produzir (arts. 319, VI e 336, CPC), deveres estes que se refletem na réplica do autor (art. 350, CPC). Igualmente é possível mencionar a regra da dialeticidade recursal, exigindo-se que o recorrente impugne especificamente os fundamentos da decisão recorrida (art. 932, III, CPC), o que, por decorrência do princípio da igualdade (art. 5º, I, CFRB e art. 7º, CPC) deve se exigir igualmente das contrarrazões recursais.

Todos esses exemplos de regras que exigem a justificação nas postulações dos sujeitos processuais passam a ser integrados pelo comando do art. 489, §§1º e 2º, do CPC, impondo-se uma necessidade de justificação analítica, sendo possível um maior rigor na análise da argumentação de todos os sujeitos processuais. Apenas se pode exigir uma justificação analítica do juiz se a parte, em sua postulação, também desenvolve uma argumentação igualmente analítica.

A petição inicial, por exemplo, deve apresentar sua fundamentação de forma analítica, sob pena de reconhecimento da inépcia. A parte não poderá valer-se de meras paráfrases da lei (art. 489, §1º, I, CPC); não poderá alegar a incidência de conceito jurídico indeterminado ou de cláusula geral, sem a devida demonstração das razões de sua aplicação ao caso concreto (art. 489, §1º, II, CPC) e assim por diante. Tais exigências são igualmente aplicáveis às demais postulações. Uma contestação que se limita a apontar que determinado fato não ocorreu, sem justificar as razões pelas quais o faz, terá, sobre tais fatos, uma presunção de veracidade (art. 340, CPC). Se um determinado agravo interno se limite a repetir os argumentos utilizados em recurso especial inadmitido monocraticamente, não ultrapassará a regra da dialeticidade, não devendo sequer ser admitido.

Existem postulações que não possuem exigência expressa de argumentação específica para serem conhecidas. É o caso, por exemplo, das contrarrazões. Além disso, mesmo naquelas que existem, a exemplo da inicial, pode ser que apenas um dos argumentos não tenha sido formulado de maneira analítica, como a exposição de que um determinado texto normativo serve como base para determinada pretensão. Nesse exemplo, não se tem uma petição inicial inepta. No entanto, nas duas situações mencionadas, é possível pensar em consequencias para a ausência de justificação analítica da argumentação nas postulações: a desnecessidade de uma resposta específica do Poder Judiciário. Bastaria ao órgão julgador indicar que determinada argumentação não foi realizada de forma analítica, afirmando-se que a utilização de um texto normativo como base para um pedido não foi acompanhada da demonstração da sua relação com o caso concreto. Assim, haveria uma exigência de argumentação analítica dos sujeitos processuais para que se possa, igualmente, exigir-se uma justificação analítica dos respectivos argumentos por parte do órgão julgador.

Em recente decisão, que foi a causa desse editoral, o STJ reconheceu expressamente a aplicação do art. 489, § 1º, do CPC, às partes ao analisar um agravo interno em que o recorrente se teria limitado, literalmente, a repetir os argumentos trazidos no recurso especial (STJ, 2ª T., AgInt no AREsp 853.152/RS, Rel. Min. Assusete Magalhães, j. 13/12/2016, DJe 19/12/2016); teria, inclusive, se utilizados dos mesmos precedentes invocados no recurso especial que fora inadmitido. A decisão monocrática teria obedecido aos ditames do art. 489, §1º, VI, ao demonstrar que os precedentes invocados não se aplicavam ao caso concreto, por meio da utilização da técnica da distinção.

Consta do voto da relatora que a “decisão ora agravada deveria ter sido combatida com o enfrentamento dos fundamentos determinantes do julgados apontados como precedentes, ou com a demonstração de que não se aplicariam ao caso concreto, ou de que haveria julgados contemporâneos ou posteriores do STJ, em sentido diverso, e não com a mera afirmação de que “a parte suscitou divergência jurisprudencial, em seu recurso e juntou acórdãos deste Superior Tribunal de Justiça que demonstram entendimento diverso da jurisprudência apontada pela Relatora””. Em outros termos, deveria o recorrente alegar a possibilidade de distinção ou de superação dos precedentes utilizados pela decisão monocrática.

A decisão segue um caminho correto, eis que, em um modelo cooperativo de processo, não se pode pensar apenas em deveres de justificação analítica por parte do órgão julgador. Se o objetivo é o de estabelecer uma comunidade de trabalho que efetivamente dialoga entre si, todos os sujeitos processuais tem de fundamentar analiticamente as suas postulações. Do contrário, ter-se-á a continuação de um modelo que se limita a reproduzir monólogos, em que o contraditório substancial é apenas um faz de conta.

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